Quando pairamos defronte o endereço da Rua Mem de Sá, número 66,Centro do Rio de Janeiro (mítico bairro da Lapa), é inevitável não passar um filme pelas nossas cabeças… O espaço que até pouco tempo era conhecido como Teatro Odisseia, havia mudado seu nome para uma alcunha mais “cult” em 2020 (Kubrick), até termos o aterrador anúncio da pandemia, o que obviamente gerou o seu fechamento. Simultaneamente a essa tragédia sem precedentes que pairou sobre a humanidade, a Nervosa, um dos maiores nomes recentes do Metal brasileiro no exterior, anunciou uma impressionante cisão: a saída da front woman e baixista Fernanda Lira e da baterista Luana Dameto.
A história acabou em final feliz com as meninas assumindo seu “plano B Death Metal” como razão principal (a recém formada CRYPTA) e a Nervosa com a remanescente Prika Amaral, convocando integrantes estrangeiras e se estabelecendo na Europa. Todo aquele período de bloqueio e isolamento social, permitiu que os trabalhos se aprofundassem a pleno vapor, com a introdução no time das guitarristas Tainá Bergamaschi e a holandesa Sonja Anubis (mais tarde substituída pela também “brasuca”, Jessica Falki), e lançassem com toda pompa pela gravadora Napalm Records, o incensado álbum de estréia “Echoes Of The Soul”, com direito a singles que obtiveram bem produzidos vídeo-clipes.
Após apresentações com necessárias medidas de isolamento, saíram em turnês mundiais com absoluto sucesso de público e crítica especializada. Além do seminal festival Wacken, desbravaram várias outros eventos desse porte com turnês pela Europa e também América Latina (duas passagens pelo Brasil!), sempre impressionando a todos com seu espetáculo. Aliás, quer mais prestígio do que recentemente em uma temporada pelos Estados Unidos abrindo para a lenda Morbid Angel, onde tragicamente um furacão de fúria apocalíptica destruiu além de parte da casa de show (vitimando um fã), o tour-bus alugado pela banda. Sem direito ao seguro por serem estrangeiras, lançaram uma campanha de financiamento coletivo no valor de 60.000 dólares para custear esse enorme prejuízo e surpresa: em 24 horas da vaquinha, já tinham o valor estipulado! Isso é MUITO MORAL, concordam???
Mas para falarmos da CRYPTA nos palcos, voltamos ao local no qual este texto se inicia na portentosa Lapa, agora sob a alcunha de AGYTO. Num início da noite de uma quinta-feira (abertura da casa às 19:00), a Tomarock Produções proporcionou um maravilhoso “desgraçamento sonoro” para os fidelíssimos adeptos do extremismo metálico: a revelação paulistana Black Metal (com letras em português) VAZIO, as maravilhosas meninas protagonistas dessa matéria e os americanos precursores do gênero Death Metal, INCANTATION, comemorando seus 30 anos de trajetória.
Um clima inconstante com chuvas ocasionais, algo que costuma afastar culturalmente o público da cidade, também tinha mais “concorrência”, como o produtor Luciano Tomarock destacou no microfone: “show no Rio de Janeiro não tem como escolher data. Obrigado por terem deixado de assistir o jogo dos seus times de futebol para estarem aqui”, bradou numa espécie de desabafo frente a dificuldade dos promotores da cidade em arrematar eventos desse tipo e dos hábitos do povo carioca que muitas das vezes contribuem para que shows internacionais não aportem por aqui…
Mas os fãs não perderam a oportunidade e tivemos uma ótima lotação para fazer jus a esse grande acontecimento! Abrindo os trabalhos, o VAZIO mostrou que realmente é uma das maiores revelações surgidas mediante essa horda, com um set curto calcado nos seus últimos lançamentos, principalmente o excepcional álbum “Eterno Aeon Obscuro” (2020). Não temos dúvidas que alçarão patamares estratosféricos dentro deste cenário, com sua simbiose arrebatadora de referências das mais díspares, como cantos de prerrogativa étnica, experimentalidade sonora e simultaneamente possibilidades rápidas frente a passagens lúgubres de alto teor teatral. Com uma presença cênica que arrebata todas essa similaridades, deixou um saldo mais do que positivo, com uma audiência que cada vez mais se tornava numerosa e merecidamente ovacionou os caras de forma bastante merecida!
E fazendo uma analogia com o ocorrido recentemente a elas, o que a CRYPTA promove em cima do palco é simplesmente um “tornado” de intentos apocalípticos, e que não deixa “pedra sobre pedra”. O nível técnico ABSURDO de cada integrante, juntamente a carisma, força das composições e muito suor entregado, proporcionam sem o mínimo temor de exagero nestas palavras, um dos maiores espetáculos presenciados em todo o planeta! O empoderamento feminino é promulgado numa das primeiras falas de Fernanda com o público: “cadê a mulherada? Quero ouvir vocês!” Atrás no telão, a Tomarock Produções passava frases concisas de conscientização como “se você se sentir incomodada por um homem, comunique a segurança”, “mulher trans não paga nossos eventos” e “não toleramos fascismo, sexismo, homofobia e racismo”, contribuindo para que toda a fúria mulheril entregue pela CRYPTA naquele templo, fizesse emblematicamente ainda mais sentido!
O único problema do show é a curta duração… Dá um gosto de QUERO MAIS abrupto, ainda mais com a sinergia promulgada por cada palavra de Fernanda Lira, uma das grandes performers da atualidade: “Viva Rita Lee!”, faz justiça mediante essa rainha desbravadora que proporcionou o caminho trilhado por várias gerações e que desembocou no fenômeno de bandas femininas como a CRYPTA (e aclamada por todos da audiência!). Vale frisar que todas as integrantes tiveram seus nomes gritados em uníssono, “From The Ashes” devidamente regida, teve refrão urrado maravilhosamente pelo público e ainda a promessa que o Rio de Janeiro será presenciado com um show de maiores proporções (set mais extenso e quem sabe, o Circo Voador) na próxima passagem, pois a conexão foi absurdamente visceral. UFA!!! É realmente uma experiência inesquecível assistir essas “meninas super-poderosas” no palco, SENSACIONAL! Se a noite acabasse aqui, estariam todos felizes…
Mais ainda tinha a grande atração da noite, a lenda INCANTATION liderada pelo vocalista e guitarrista John McEntee, para literalmente abalar as estruturas daquele AGYTO. O baterista de longa data Kyle Severn ditava os rumos desta verdadeira “montanha-russa distorcida em patamares abruptos e desgovernada”, passeando por todas as fases da história da banda e ministrando uma verdadeira aula do gênero Death Metal, levando um abalo sísmico com tremedeira nas estruturas através dos decibéis, ao boêmio e em grande parte sambista bairro da Lapa. Os caras de Nova Jersey mostram toda a relevância alçada nesses 30 anos de estrada, e a coesão sonora dos integrantes somado ao excepcional repertório, deixou o povo “camisa preta” literalmente de boca aberta. INCRÍVEL!
Destaco “Impending Diabolical Conquest” como um HINO dessa catarse de celebração extrema sem precedentes, mas toda a apresentação foi deveras MAGISTRAL. E não podemos deixar de destacar o duelo incandescente das guitarras de Chuck Sherwood e Alex Bouks, que contribuíram para um efeito que todo fã desse estilo aprecia sensorialmente: os ouvidos zumbindo por um longoooo tempo. Sim, o Rio de Janeiro numa quinta-feira de chuva e futebol, promove uma festa nessas proporções que tão cedo não sairá da memória de quem esteve lá… Parabéns a Tomarock Produções, aos artistas e a plateia por esta noite memorável no “purgatório da beleza e do caos”, cada vez mais carente de shows internacionais dessa natureza.
Crédito Fotografia: Thays Pantuza @thayspantuza @zumbidoproducoes