Uma das maiores celeumas que corre na boca miúda dos fãs de rock’n’roll por todo o planeta (principalmente os de instâncias mais pesadas!), é o fato do gênero não alçar mais as paradas mainstream, ter perdido a visibilidade de outrora e ser praticamente ignorado pelas novas gerações. E esse paradigma é bastante creditado por uma suposta falta de renovação mediante o casting artístico existente no estilo. Percebemos nos mais relevantes festivais do planeta, bandas veteranas sempre se revezando entre as atrações de maior destaque nos principais palcos desses eventos e principalmente, ocupando a posição de headliners.
Então, encontramos a maior das contradições possíveis! Quando surge um bando de novos roqueiros que alcança camadas estratosféricas, novamente despertando a atenção de instâncias bastante jovens para essa sonoridade, as opiniões se dividem e a polêmica acaba dividindo o protagonismo que esse fenômeno deveria incorrer apenas pela questão musical. Mas a verdade é que na mesma intensidade que o Greta Van Fleet abarcou milhares de novos adeptos para o rock, apanhou MUITO também, tanto de setores da crítica especializada, quanto dos adeptos mais radicais do gênero.
A principal acusação é que faltava identidade a banda de Michigan, e que seria apenas um mero pastiche do Led Zeppelin. Mas oras, não queriam uma renovação que ocupasse os postos mais altos de acessos, vendagens, assim como a atenção das principais mídias e premiações (vários Grammys na bagagem!)? O Greta Van Fleet conquistou seu espaço no Olimpo e seguiu adiante assumindo as referências, mas deixando claro que teriam muito que mostrar e aprimorar-se ao longo do tempo (“temos muitas perspectivas para incorrer”, afirmaram). E trata-se de grandes músicos: os irmãos gêmeos Josh Kiszka e Jake Kiszka, além do irmão caçula Sam Kiszka e o baterista Daniel Wagner. Os shows sempre impactaram pela entrega e química visceral nos palcos, vinda desta família de proporções roqueiras dotada de visual nostálgico, e sim, arrancando vibração geral, mas em especial do público feminino!
A quanto tempo não nos deparávamos com um cenário como esses? O público de classic/hard/metal parece ter resistência a bandas com juventude tendo visibilidade, ao contrário do cenário alternativo, onde os grupos indies são recebidos de braços abertos saindo “frescos” e cheios de fúria das suas garagens. Só para lembrarmos, o Def Leppard quando surgiu de forma arrebatadora em seu álbum de estreia, “On Through The Night” (1980), com seus integrantes variando entre 17 e 19 anos de idade, foi chamada de “Menudos do Metal”, fazendo alusão a uma banda de boy-band porto-riquenha bastante famosa (e ridicularizada na mesma proporção) da época.
Independente de terem se atentado as críticas ou não, o segundo álbum “The Battle of Garden’s Gate”, envereda por outros direcionamentos dentro dos anos 70 (a nostalgia continuou firme e forte!), como art-rock e o glam rock, além de estruturas progressivas, diminuindo generosamente a influência zeppeliana. Os singles e o disco como um todo foram muito bem aceitos (topo da Bilboard!) e o Greta Van Fleet continua as frentes da batalha com ardor e o talento que lhes é cabível! Convidados para abrir os shows no Brasil em parceria conjunta com o Metallica (ao lado do Ego Kill Talent), aproveitaram que os veteranos thrash-metal não passarão pelo Rio de Janeiro e vieram em voo solo até a cidade maravilhosa, já que estreitaram uma relação das mais sólidas por aqui.
Após a primeira visita do bardo americano por essas paragens, quando visitaram uma favela em nosso “purgatório da beleza e do caos”, a inspiração bateu forte: “Nunca vi uma coisa assim”, afirmou Josh Kiszka, após ficar “chocado” com a pobreza e escrever sobre “pessoas buscando salvação” em “The Battle at Garden’s Gate”, uma influência direta com a nossa realidade! E cá estamos nesta terça-feira, 03 de maio, no Qualistage (dentro do shopping Via Parque, Barra da Tijuca), o antigo e tradicional Metropolitan, que para nosso alívio não fechou as portas durante a pandemia, como havia sido previamente anunciado.
A abertura deveria ter sido do incrível bardo multi-étnico do Francisco, El Hombre, mas o cancelamento se deu após a confirmação de contaminação pelo COVID-19 de dois integrantes da banda. Aos 45 do segundo tempo, Daniel Silva empunhando seu violão elétrico, agradou a plateia cada vez mais numerosa com a mescla de sons autorais e versões acústicas do repertório de Beatles, Temple of the Dog e John Lennon, aquecendo com louvor o que estávamos a presenciar.
Após uma longa introdução de tons épicos, a dramática “Heat Above” adentra o ambiente e presenciamos uma comoção sem precedentes! O público carregado em tons heterogêneos, tinha em grande maioria crianças, adolescentes e jovens, que dividiam a devoção (e a camisa da banda também!) com muitos “cabeça branca”. Aliás, víamos famílias inteiras uniformizadas, em uma atmosfera emocionante e muito bonita em se presenciar! Olha a renovação aí, impossível negar! O palco, provavelmente em condições improvisadas (lembrando que estão na América do Sul abrindo para o Metallica), era completamente cru, sem sequer um pano de fundo, mas remetia novamente a fulminante década de setenta em sua estética. Agora, a marcação MAGISTRAL das luzes nos conduziu para um mundo de sonhos, mostrando que o menos pode ser muito MAIS, impressionando pelo impacto visual apresentado!
O visual dos caras se dividia entre muito brilho da estética glam, com o despojamento hippie de outrora, como ficava latente nos pés descalços, camisas abertas e atitude totalmente “flower & power”. Instrumentos e microfones com “fio de cabo de telefone” nos teletransportavam para uma viagem sem precedentes a um determinado momento histórico (não precisamos repetir qual a década, não acham?), tendo como linha condutora obviamente o som poderoso que vinha do palco! “When The Curtain Falls” e “Safari Song”, do debut de estreia, trazem a audiência definitivamente para o espetáculo, com uma performance explosiva e arrebatadora do repertório que os fez serem capultados a estruturas elevadíssimas em tão pouco tempo.
Na quarta música, um número que costuma ser tão obrigatório nos shows de hard rock como a ala das baianas em uma escola de samba: o famigerado solo de bateria! Mas detalhe, além de estar incluída no repertório, os irmãos não saíram do palco e ficaram também degustando a técnica privilegiada do baterista Daniel Wagner. Mais um ponto bastante favorável, o número fugiu totalmente da obviedade em que estamos acostumados. A grande realidade é que o amadurecimento musical dos “guris” em tão pouco tempo é espantoso, e isso fica latente nas músicas do último álbum. O lado instrumental carregado de muitos improvisos, abduz subliminarmente num belíssimo transe sensorial coletivo, e apresenta um potente show de rock’n’roll calcado nas influências setentistas que gritam explicitamente no volume máximo!
A sequência com “Built By Nations”, “Age of Machine”, “The Weight of Dreams” e “My Way, Soon”, se consistiram em um espetáculo a parte, com os novos fãs bradando cada sílaba, chorando em uma incrível entrega emocional, enquanto os “mais antigos” com um sorriso no rosto, se divertiam horrores. Aliás, a banda parecia estar bastante surpresa com a comoção sem precedentes da audiência, onde vários cânticos com o nome do grupo eram proferidos gradativamente em uníssono!
Sobre a performance do GVF no palco, Jake MAGISTRAL empunhando sua guitarra, IMPRESSIONA demais! Não temos dúvidas que colocará seu nome frente ao instrumento ao longo da história. Sam com seu estilo arranjador, se dividindo entre baixo, órgão e piano, me remeteu a um certo John Paul Jones, que vocês sabem muito bem de qual instituição histórica integrava… Neste caso a comparação é muito bem vinda e louvável, pois faz um belíssimo trabalho! Josh e a voz privilegiada, explodindo em agudos ensandecidos que a juventude vocal costuma privilegiar bastante, apesar da timidez em se dirigir ao público, mostra-se menos espalhafatoso e cada vez calca numa primazia de excelência como um grande front-man! Daniel, vale a pena repetir, é um dos grandes bateristas da sua geração, e ponto!
Após presentear a fã com sua panderola e empunhar a bandeira do Brasil presenteada pela “fila do gargarejo” com a logo do grupo escrita em lantejoulas (mais hard impossível!), tivemos a espetacular encore do bis, com as viscerais “Light My Love” e o hino “Highway Tune”, onde a catártica relação com a plateia eclode sensorialmente de vez com a magistral versão de “That’s All Right”, eternizada pelo Rei supremo Elvis Presley, onde o improviso, a visceralidade e a troca energética chegou as raias do inenarrável! Simplesmente, um dos GRANDES SHOWS DE HARD SETENTISTA, unindo o séquito rock’n’roll de todas as gerações possíveis, que passou pela cidade nos últimos tempos!
Para os corneteiros de plantão que ainda implicam com o repertório, as canções apresentadas poderiam ter saído SIM, da produção de lendas como Led Zeppelin, Rush dos primeiros álbuns, T-Rex e Triumph, mas qual o demérito??? O que importa é uma casa com capacidade para mais de 10.000 pessoas praticamente lotada numa terça-feira, e a história contada no palco atestando que o rock está mais vivo do que nunca, muito por causa da ascensão desses meninos, como presenciamos nas filas imensas para compra de merchandising no pós-show. O Rio de Janeiro foi ceifado da despedida do KISS, mas abrilhantado com o melhor futuro que o rock’n’roll poderia ter! Estamos em excelentes mãos com o Greta Van Fleet…
Texto por Alessandro Iglesias
Fotos de Daniel Croce