A introdução da canção é construída de uma maneira minimamente interessante. Afinal, ela explora, desde seu despertar, nuances percussivas repicadas abraçadas por uma sonoridade levemente ácida, contrapondo os embrionários impulsos de sensualidade identificados em tal desenvoltura. O curioso é que, essa melodia, é efetuada única e exclusivamente por um baixo agraciado por uma distorção que lhe dá um caráter levemente eletrônico como a base de sua silhueta bojuda e encorpada. Logo que o primeiro verso se instaura, o que acontece não muito depois, a canção passa a ser regida por uma voz masculina levemente rasgada em seu tom agudo. Vinda de Michael Joseph Green, ela, por meio da forma como é usada para interpretar o conteúdo lírico, acaba enaltecendo o senso de sensualidade ao mesmo tempo que dá ao ambiente ligeiros requintes de suspense. Blue Ruin, através desse arranjo, consegue comunicar ao ouvinte a mistura equilibrada entre o funk e o rock alternativo, ao passo que explora o princípio do caos e uma espécie de calmaria ludibriante no centro da tormenta.
Diferente do que acontece já na introdução da canção anterior, o presente amanhecer dá ao ouvinte a oportunidade de sentir o frescor do crepúsculo da manhã, ao mesmo tempo em que lhe possibilita uma confortável imersão da experiência do torpor. Baseada em uma levada rítmica lexicalmente sensual a tal ponto que, curiosamente, chega a até mesmo flertar com a paisagem estética da disco music, a obra se permite se aventurar por um terreno de protagonismo de sonoridades digitais. A partir daí, não é difícil para o espectador se ambientar nos idos dos anos 70. Afinal, da new wave a lapsos do synth-pop, a composição se mostra uma perfeita mistura musical, mas sem perder sua linha de raciocínio estrutural. Irresistivelmente dançante, Bonus Points é marcada por um swing de caráter mais libidinoso em relação àquele de Blue Ruin. Importante ressaltar que, nas imediações da melodia, o ouvinte pode perceber a presença da guitarra e sua movimentação ligeiramente pipocante. Com seu sonar agudo, o instrumento é capaz de inserir, na atmosfera, pitadas de uma energia solar que ativa uma postura cheia de disposição e receptividade para a experiência do novo.
Como a perfeita demonstração da audição de uma estação de rádio baseada na estética da interferência de sinal típica dos anos 60, a canção, sem demora, encaminha o ouvinte para um instante instrumental pulsante, preciso e, simultaneamente, com uma leve menção de densidade. Com boa e marcante participação do piano em meio às suas notas de pronúncia sincopada, a canção consegue desfrutar de um flerte audacioso entre as roupagens do blues e de um boogie-woogie baseado em um andamento mais lento, de forma a enaltecer o sendo de dramaticidade. De energia ousadamente sombria, Your Move dá vasão para certo grau de protagonismo da acidez adocicada do hammond na criação tanto do escopo harmônico quanto de um senso curiosamente fantasmagórico. O interessante, nesse ínterim, é perceber que Your Move atinge patamares que a tornam uma espécie de representante do jazz modernista a tal ponto que flerta com a roupagem estética de Feeling Good, single do Michael Bublé.
Pode ser injusto abordar algumas canções com mais afinco em relação às demais existentes em uma mesma track list. Porém, o que acontece é que os três primeiros títulos de V trazem uma comunicação sinérgica entre si capaz de representar, mais fidedignamente, todo o viés musical do álbum. E nesse aspecto, é importante ressaltar a versatilidade e a consequente ausência de rotulagem unilateral do conteúdo.
Afinal, não apenas no que tange seu despertar, mas em toda a sua desenvoltura, o material prova ser misto, eclético e aberto a diversas texturas que, às vezes, parecem não se comunicar adequadamente. Do blues, passando pelo pop e atingindo patamares audaciosos de jazz, funk, disco music e até mesmo flertes repentinos de boogie woogie, o produto comprova a sensibilidade de Michael Green e toda a sua escola musical.
Sem esconder suas influências, mas conseguindo as fundir de maneira a lhe proporcionarem um som único e autêntico, Green ainda esbanja afinação, boa extensão vocal e, principalmente, consciência de seu timbre. A partir daí, é possível encontrá-lo sobre vertentes mais graves, outras mais abertas, e outras em que, inclusive, se permite assumir um caráter nasal. Tudo isso contribui para o enriquecimento das texturas que preenchem V, o tornando um importante marco na discografia do cantor canadense.
Mais informações:
Spotify: https://open.spotify.com/intl-fr/artist/2lGCrTCP5HJJx9WcMCU8m6
Facebook: https://www.facebook.com/MJGMusicLives/
Twitter: https://twitter.com/MusicMjg
Instagram: https://instagram.com/mjgmusiclives